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domingo, 30 de janeiro de 2011

10 anos sem carlos grace




“O Jiu-Jitsu deu um rumo em minha vida” – Carlos Gracie

“Uma das maiores heranças que ele deixou foi o poder da disciplina e da força de vontade” – Rilion Gracie

Em 1994, o Brasil perdia a alma do Jiu-Jitsu, mas seu legado...

O primeiro arqui-rival dos Gracie não foi nenhum japonês, mas sim um nativo casca-grossa. No inicio do século XX, o pequeno Carlos, neto de um imigrante escocês que se estabelecera na verde Belém do Pará, não hesitava em enfrentar um adversário de olhos arregalados, estilo rasteiro e unhas e dentes.

Não era raro se flagrar aquele irrequieto filho de um figurão local brincando de pique-pega com um jacaré que vivia no rio próximo à casa do menino. O Gracie sempre levava vantagem: curioso e dotado de um senso de observação aguçado, Carlos havia percebido que o réptil não enxergava debaixo d’água, apenas nadava em linha reta, e para mudar de trajetória tinha de pôr a cabeça para fora. Saindo simplesmente da direção dos dentes do animal, o Gracie vencia sempre.
Essa e tantas outras histórias foram resgatadas pela filha Reyla Gracie e aparecerão pela primeira vez no livro em que ela quer contar a história do pai, nascido em 14 de setembro de 1902, o primeiro membro da família a tomar contato com a arte marcial que, nos anos que se seguiriam, seria impossível dissociar do nome Gracie. O Jiu-Jitsu, assim, foi a vida de Carlos (e vice-versa) desde que seu pai Gastão, tentando canalizar a energia do menino que mostrava ter poucos limites, o deixou aprendendo uma nova luta com um japonês seu amigo, Mitsuyo Maeda, já conhecido como Conde Koma. Aos 14 anos, assim, Carlos começaria uma saga que, mesmo sem ninguém supor, ganharia ringues e academias de todo o planeta. Ou será que alguém já poderia imaginar? “De todos os alunos que o Conde Koma ensinou, que não foram poucos, já que ele viajava o mundo e vivia profissionalmente do Jiu-Jitsu, somente um aluno entendeu a grandeza daquele conhecimento, adotando o Jiu-Jitsu como profissão. Acredito que meu pai Carlos teve desde cedo essa compreensão do que ele começava a aprender, não foi à toa ele ter criado uma escola que perdura há 80 anos”, afirma Reyla, que trabalha no livro desde 1999 reunindo entrevistas, recortes da imprensa da época, livros e documentos sobre o assunto.

De fato, quando Carlos começou a travar os primeiros contatos com as técnicas de Conde Koma, em 1916, o jovem Gracie ainda era uma personalidade em formação, tal qual a rústica Belém do Pará, que fazia as vezes de porto de entrada do Brasil, com influências das culturas européia e japonesa, e por outro lado era totalmente selvagem, com índios, mata fechada e os rios onde os mais destemidos brincavam. “O Jiu-Jitsu deu um rumo em minha vida”, costumava dizer Carlos. Dedicado aos treinos e interessado nas técnicas, não demorou para que o irmão mais velho de Helio Gracie se destacasse dos demais alunos. “Certa vez o Conde Koma precisou de um voluntário para demonstrar uma espécie de estrangulamento, e o Carlos se ofereceu. O japonês não aceitou e chamou outro, e depois explicou a meu pai: ‘Você será um campeão, e não está aqui para ser estrangulado’”, lembra o faixa-preta Rilion, um dos 21 filhos do patriarca da família famosa.

Com as constantes idas e vindas do nômade Maeda, Carlos não diminuía o ritmo de treinamentos, passando a apurar as técnicas com outro aluno do japonês, o empresário local Jacinto Ferro. “O admirável é que nem o Ferro nem o Conde Koma estabeleceram uma academia por ali, nenhum pupilo levou adiante, e o Jiu-Jitsu no próprio Pará desapareceu. Quem o levaria de volta foi, décadas depois, alguém que aprendera na escola dos Gracie, no sudeste do país”, lembra Reyla. Com a situação deteriorando economicamente na família, o pai catou-o juntamente com os irmãos mais novos, Osvaldo, Gastão, Jorge e Helio, o último 11 anos a menos que Carlos, para tentarem novos ares no Rio de Janeiro, depois em São Paulo e Belo Horizonte.

Aos 22 anos, Carlos Gracie passou a viver profissionalmente do Jiu-Jitsu. Foi a época dos desafios publicados em jornais, (“Quer uma costela quebrada? Procure Carlos Gracie”, dizia um deles), da busca de adversários, do nascimento do vale-tudo e da oposição e desconfiança dos praticantes de outros estilos. “Ele não tinha cara de lutador, mas de jogador de xadrez. Então chegava para treinos em academias de polícia. Como não davam crédito, ele tinha que demonstrar a eficiência da arte que acreditava, que o Jiu-Jitsu operava milagres e que ele mesmo bom lutador”, diz Rilion. A irmã Reyla esclarece: “Carlos sempre foi totalmente contra a associação do Jiu-Jitsu com a violência. Obviamente que, no inicio, Carlos botava anúncio nos jornais e desafiava estivadores muito mais musculosos no cais do Porto até porque, na década de 30, existia a necessidade de firmar uma supremacia e formar uma identidade. Foi quando começaram os comentários: ‘Os Gracie são invencíveis’. ‘Os Gracie resolvem na porrada’ (risos)”, diz. “Mas cada momento histórico era diferente. Quando na década de 70 o Jiu-Jitsu se transformou em esporte, não havia mais a necessidade de provar nada. É como hoje, quando fazer ou não vale-tudo começa a ser uma opção pessoal; não há mais a necessidade que havia nos tempos de papai e Tio Helio de provar a supremacia e eficiência do Jiu-Jitsu no ringue”, conclui.

O papel de Carlos para os filhos, assim, foi muito maior do que até hoje os fãs e torcedores têm conhecimento. O velho Gracie acumulou o papel de professor, estrategista, promotor, idealizador e formador do clã, o que Reyla pretende mostrar com o livro, programado para ano que vem, três anos depois do centenário de Carlos. “Existe o homem e a obra. A obra do meu pai foi o Jiu-Jitsu, a família e a alimentação, que estão entrelaçados por toda sua história. A família também é um legado que ele idealizou, um produto do pensamento dele. Porque o próprio projeto do Jiu-Jitsu dependia da família. Criando uma tradição dentro da família, seria uma garantia que o Jiu-Jitsu seria perpetuado e difundido ao longo das décadas”, diz Reyla.

Para Rilion Gracie, os dez anos sem o pai deixaram de fato algumas lacunas e muitas heranças: “Uma das maiores heranças que ele deixou foi o poder da disciplina e da força de vontade. Nunca vi meu pai um dia sem fazer exercícios físicos, e uma época, ele passou seis meses indo todo dia ver o sol nascer do Cristo Redentor, onde meditava. Todo dia, não deixava de ir nunca”, lembra o filho. “Ele era o ponto de referência da família, o núcleo, e na década de 80 sempre ao fim dos campeonatos todos se reuniam para avaliar o desempenho de cada um, os erros e acertos. Senti que quando ele morreu isso se perdeu um pouco. E ele nunca bateu num filho, nem falava ‘FDP, enfia a porrada nele’, diante dos adversários. Só passava coisa boa, então isso não tem preço”, diz.

Nada porém recebeu maior gratidão de todos os membros da família do que a alimentação particular elaborada por Carlos Gracie, durante anos a fio, baseada em estudos e experimentos aos milhares. Depois de incutir nos filhos, sobrinhos e netos a necessidade de escutar o corpo e ingerir tudo em benefício do organismo, hoje não é exagero dizer que já são 50 anos de consagração da alardeada Dieta Gracie, cujo princípio básico é evitar o excesso de acidez na alimentação, o que para seu criador era a principal causa da deterioração do organismo e o conseqüente mal-funcionamento dos órgãos. A dieta visa então a manter as refeições as mais alcalinas possíveis, equilibrando as substâncias através da combinação certa.

Resumir no entanto a ciência de Carlos a isso é no entanto diminuir muito de sua obra, uma das coisas aliás com que Reyla mais se preocupa enquanto prepara sua história: “Ele antecipou várias das hoje tão propagadas descobertas científicas, como o papel benéfico do caroteno, substância encontrada no mamão e na cenoura, o conceito dos radicais livres e da medicina ortomolecular, sem falar no seu pioneirismo em relação ao hábito de tomar açaí, suco de melancia, água de coco, vitaminas batidas” , ressalta ela. “E, quando ninguém falava em nutrição, ele percebeu a validade de cortar a carne vermelha antes das lutas do Tio Helio, já que a carne dá poder de explosão, mas não resistência a longo prazo. A comprovação da eficiência da dieta dele portanto não demorou: em 1955, Tio Helio não lutou com o Waldemar durante 3h40m ininterruptamente?”.

O interesse na saúde e alimentação, como tudo na vida do neto de escoceses, não foi aleatório. Lado a lado com a crescente desconfiança em relação à medicina tradicional, o especialista naquela nova arte marcial percebeu a necessidade de cuidar, através de sua própria dieta, da melhor forma de sua principal ferramenta de trabalho, o corpo.

Carlos Gracie, de fato, fez de quatro a cinco lutas célebres, sendo a última delas contra Rufino, em 1931, cuja foto Reyla guarda a sete chaves, e outra, essa um vale-tudo puro, no Rio de Janeiro, contra o capoeirista Samuel. “Lá pelas tantas o Samuel se viu obrigado a agarrar os testículos dele”, rememora Rilion. A mais famosa, no entanto, foi mesmo mais um clássico Gracie x Japão, realizado em São Paulo, em 1924. Contra Geo Omori, que se dizia representante do Jiu-Jitsu japonês, Carlos fez o combate que mais o marcou. Quase ao final dos três rounds de três minutos, o Gracie encaixou a chave inapelável no braço do adversário, olhou para o juiz e este mandou seguir. Carlos quebrou o braço do rival, mas este não se abalou e ainda deu uma queda num desconcentrado Gracie, antes do final da luta, que terminou empatada e com ambos se reverenciando, num tempo em que só batendo ou dormindo alguém saía derrotado.

Pelo que se conta, porém, a cena mais marcante foi da torcida paulista, que atirou os chapéus no ringue tão logo o brasileiro partiu o braço do adversário. “Ele se especializou no armlock”, atesta sempre orgulhoso Rilion. “Pois uma coisa era dar o armlock quando o cara dava bobeira, mas ele avisava antes, ‘vou te ganhar no armlock’, e o cara encolhia o braço. Então ele desenvolveu uma técnica de como buscar o braço quando o cara sabia que ele ia no armlock. Ao meu ver, isso é o início do aperfeiçoamento do Jiu-Jitsu brasileiro, que é marcado por induzir o adversário ao erro, onde o mais fraco consegue superar o mais forte”.

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